quarta-feira, 30 de setembro de 2009

O Gigolô das Palavras


Eu não sei quanto ao resto dos brasileiros, mas eu ando preocupadíssimo com esse novo acordo da língua portuguesa, que irá promover uma reforma ortográfica na nossa mal-falada língua.

Eu fico pensando. A língua portuguesa já é tão complicada de ser falada, escrita e interpretada. Nem alguns dos mais cultos e letrados intelectuais conseguem interpretar e utilizar a gramática da maneira totalmente correta, o que será de nós, pobres mortais?

As novas regras, apesar de não estarem sendo respeitadas, já estão em vigor desde janeiro de 2009. Até o início de 2012 será permitida, em concursos, jornais, revistas e etc. a escolha entre usar as novas regras ou não usar as novas regras, ou ainda escrever utilizando as duas regras promovendo uma enorme suruba textual.

Até aí tudo bem. Mas e quando o prazo de adaptação terminar e tivermos, obrigatoriamente, que ler e escrever interpretando a nova reforma ortográfica da língua portuguesa? Será que nós vamos saber escrever?
Se do jeito que está, a nossa escrita já não é lá essas coisas, imagina quando mudarem nosso jeito de escrever? Será que vamos desaprender o português?

Para ajudar a esclarecer todas essas dúvidas, convoquei um grande amigo. Como ele é escritor, jornalista, cronista, intelectual, modelo e atriz, achei que só ele poderia nos ajudar. Afinal, só ele sabe tudo das palavras. Ele é O Gigolô das Palavras. Luís Fernando Veríssimo.


O Gigolô das Palavras

Luís Fernando Veríssimo

Quatro ou cinco grupos diferentes de alunos do Colégio Farroupilha estiveram lá em casa numa mesma missão, designada por seu professor de Português: saber se eu considerava o estudo da Gramática indispensável para aprender e usar a nossa ou qualquer outra língua. Cada grupo portava seu gravador cassete, certamente o instrumento vital da pedagogia moderna, e andava arrecadando opiniões. Suspeitei de saída que o tal professor lia esta coluna, se descabelava diariamente com suas afrontas às leis da língua, e aproveitava aquela oportunidade para me desmascarar. Já estava até preparando, às pressas, minha defesa ("Culpa da revisão! Culpa da revisão!"). Mas os alunos desfizeram o equívoco antes que ele se criasse. Eles mesmos tinham escolhido os nomes a serem entrevistados. Vocês têm certeza que não pegaram o Veríssimo errado? Não. Então vamos em frente.
Respondi que a linguagem, qualquer linguagem, é um meio de comunicação e que deve ser julgada exclusivamente como tal. Respeitadas algumas regras básicas da Gramática, para evitar os vexames mais gritantes, as outras são dispensáveis. A sintaxe é uma questão de uso, não de princípios. Escrever bem é escrever claro, não necessariamente certo. Por exemplo: dizer "escrever claro" não é certo mas é claro, certo? O importante é comunicar. (E quando possível surpreender, iluminar, divertir, mover... Mas aí entramos na área do talento, que também não tem nada a ver com Gramática.) A Gramática é o esqueleto da língua. Só predomina nas línguas mortas, e aí é de interesse restrito a necrólogos e professores de Latim, gente em geral pouco comunicativa. Aquela sombria gravidade que a gente nota nas fotografias em grupo dos membros da Academia Brasileira de Letras é de reprovação pelo Português ainda estar vivo. Eles só estão esperando, fardados, que o Português morra para poderem carregar o caixão e escrever sua autópsia definitiva. É o esqueleto que nos traz de pé, certo, mas ele não informa nada, como a Gramática é a estrutura da língua mas sozinha não diz nada, não tem futuro. As múmias conversam entre si em Gramática pura.
Claro que eu não disse isso tudo para meus entrevistadores. E adverti que minha implicância com a Gramática na certa se devia à minha pouca intimidade com ela. Sempre fui péssimo em Português. Mas - isso eu disse - vejam vocês, a intimidade com a Gramática é tão indispensável que eu ganho a vida escrevendo, apesar da minha total inocência na matéria. Sou um gigolô das palavras. Vivo às suas custas. E tenho com elas exemplar conduta de um cáften profissional. Abuso delas. Só uso as que eu conheço, as desconhecidas são perigosas e potencialmente traiçoeiras. Exijo submissão. Não raro, peço delas flexões inomináveis para satisfazer um gosto passageiro. Maltrato-as, sem dúvida. E jamais me deixo dominar por elas. Não me meto na sua vida particular. Não me interessa seu passado, suas origens, sua família nem o que outros já fizeram com elas. Se bem que não tenho o mínimo escrúpulo em roubá-las de outro, quando acho que vou ganhar com isto. As palavras, afinal, vivem na boca do povo. São faladíssimas. Algumas são de baixíssimo calão. Não merecem o mínimo respeito.
Um escritor que passasse a respeitar a intimidade gramatical das suas palavras seria tão ineficiente quanto um gigolô que se apaixonasse pelas suas putas. Acabaria tratando-as com a deferência de um namorado ou a tediosa formalidade de um marido. A palavra seria a sua patroa! Com que cuidados, com que temores e obséquios ele consentiria em sair com elas em público, alvo da impiedosa atenção dos lexicógrafos, etimologistas e colegas. Acabaria impotente, incapaz de uma conjunção. A Gramática precisa apanhar todos os dias pra saber quem é que manda.

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